In memoriam*
"Não estás lá para celebrares o homem que fizeste..."
(estrofes do tema "You're not there" dos Lukas Graham)
* Em memória de uma pessoa muito importante na minha vida, que faria hoje anos
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"Não estás lá para celebrares o homem que fizeste..."
(estrofes do tema "You're not there" dos Lukas Graham)
* Em memória de uma pessoa muito importante na minha vida, que faria hoje anos
Quando a dor se instala na nossa vida e não sai nunca, tudo acaba por girar à sua volta. Insinua-se lentamente em tudo o que fazemos, suga as energias, ocupa os pensamentos. Vai tomando conta de tudo, a pouco e pouco, torna-se grande mesmo quando não passa de uma moinha. Atrapalha quando queremos levar uma vida normal e nos esforçamos por a ultrapassar. Satura, cansa, rouba-nos a paciência. Quando há dor, somos pessoas piores.
Tentamos distrair-nos, esquecer que ela existe nem que seja por uns momentos, fingir que não é nossa. Dizemos “está tudo bem” porque é preciso pensar positivo e não é uma simples dor que nos vai deitar abaixo. Lutamos com força para não sucumbir. Às vezes até fazemos cara alegre e rimos.
Acabamos por nos resignar a viver com ela. A encontrar formas de a contornar, a deixá-la submergir-nos quando nada mais resulta. Vamos ao fundo na esperança de conseguir voltar à superfície, de que amanhã seja melhor do que hoje. Vivemos como e quando podemos, naufragamos em dias de desespero, e sorrimos de felicidade quando ela nos dá uma trégua, mesmo que momentânea, mesmo quando sabemos que ela vai voltar em breve.
E não há diferença entre uma dor física e uma dor de coração. Ambas conseguem ser igualmente dilacerantes.
Não é fácil viver no mundo de hoje.
Um mundo que parece encolher a cada nova invenção tecnológica, mas onde as pessoas parecem afastar-se cada vez mais umas das outras. Um mundo dividido ao meio por intransigências. Pela violência. Pela fome e pela indiferença.
Um mundo que é um planeta esventrado, abusado, violentado. Um planeta em revolta, que se vinga em tempestades, sismos e inundações. Um planeta condenado à morte, onde o ser humano é o maior parasita, a maior praga que parece decidida a destruí-lo.
Não é fácil viver na sociedade de hoje.
Divididos entre o que esperam de nós e aquilo que nós queremos ser.
Espartilhados por convenções, vivendo numa manada que é suposto ser coesa, onde cada pessoa tresmalhada é constantemente, insidiosamente convencida a voltar ao redil, sob pena de se tornar indigente ou eremita.
Querendo ser fiéis aos nossos princípios mas tendo de lutar encarniçadamente contra quem nos quer impingir os seus e não olha a meios para o conseguir.
Não é fácil viver no nosso país de hoje.
Um país onde a esperança é mais fina e frágil que uma gaze.
Onde as pessoas são dispensáveis e menos valorizadas do que uma qualquer máquina, onde quem tem dinheiro tem tudo, e quem apenas vive do seu trabalho muitas vezes se limita a sobreviver.
Um país onde a mentira e o fogo-de-vista se instalaram e os lobos já nem se incomodam em usar uma pele de carneiro; e onde o que ontem era promessa e dado adquirido, hoje faz-se por esquecer, e dá-se o dito por não dito – sem remorso.
Não é fácil viver.
E menos ainda acreditar.
Não preciso que me dês espaço. Eu sei reservar o espaço que me é necessário. E se algum dia não conseguir, vou a ser a primeira pedi-lo.
Não preciso que me protejas. Sou uma mulher adulta e já passei por muita coisa. Preciso sim que me dês a mão quando me lanço no desconhecido e me deixes encostar a ti quando perco o fôlego.
Não preciso que me ajudes. Se fizeres a tua parte, não vou precisar de ajuda. Mas se me mimares quando estou cansada, eu vou gostar, e vou agradecer, e vou retribuir, porque os guerreiros dos dias de hoje também batalham, embora as armas sejam diferentes.
Não preciso que me ponhas num pedestal. Não sou santa. Sou uma pessoa vulgar que tenta viver o melhor que sabe e fazer o melhor que pode. Que vai percorrendo o seu caminho construindo-se à medida que o percorre, tentando aprender alguma coisa todos os dias.
Não preciso que me cubras de ouro. Quero tempo e experiências, não coisas. Quero uma vida, não uma conta bancária. Quero partilha de histórias, emoções, olhares e projectos. Quero um futuro, não um colar de pérolas.
Não preciso que me jures amor eterno. Não preciso de palavras só porque sim, porque é bonito dizê-las, porque agradam. Apenas preciso daquelas que vão para lá das meras intenções, das que são ditas porque espelham a tua vontade e o teu compromisso, das que têm um pedaço de ti.
Não preciso de um príncipe encantado, porque eu também não sou uma mulher de sonho.
Preciso de muito, mas há muito mais de que não preciso.
Enquanto não voltas, o mundo não vai parar de girar.
As marés vão suceder-se umas às outras e os lobos vão continuar a uivar à lua. Os pássaros farão os seus ninhos, os rios correrão para jusante e o Outono pintará as paisagens em tons de amarelo e castanho.
Quando as flores dos jacarandás caírem, as ruas ficarão atapetadas de roxo e o seu perfume vai permanecer no ar por muitos dias.
Enquanto não voltas, a vida vai continuar.
Os carros irão encher as estradas nas horas de ponta, os pais continuarão a levar os filhos à escola, adolescentes vão suspirar de paixão pelo seu cantor favorito e encher os festivais de música, chorar as suas desilusões amorosas, festejar por tudo e por nada.
Haverá casamentos e nascimentos, e doenças e lutos lacrimosos, guerras estúpidas e loucuras fatais.
Enquanto não voltas, vou continuar no meu caminho.
Levantar-me todos os dias mesmo que não me apeteça, fazer o meu trabalho como sempre, cumprir a rotina só quebrada de vez em quando. Irei às compras ao supermercado, tomar um café com amigos, comover-me com as histórias tristes dos outros e sorrir quando as notícias são boas.
Serei assaltada pelas recordações de bons momentos, farei planos para ir de férias, receberei feliz todos os abraços apertados dos que me querem bem.
Enquanto não voltas, não vou esquecer-me de viver. Mesmo que às vezes custe.
E pode ser que um dia eu já não queira que tu voltes.
Gosto de quem me faz sair da minha zona de conforto.
De quem me motiva a empurrar os meus limites na direcção do desconhecido.
A procurar saber o quê, o porquê e o como.
De quem me obriga a mergulhar mais fundo em mim própria.
A vasculhar os meus recantos mais obscuros para trazer à superfície tudo aquilo que ainda está escondido.
Gosto de quem me leva a mostrar o que de melhor e pior há em mim.
De quem me ajuda a ultrapassar-me, a extravasar-me.
A esquecer-me de quem sou para só pensar nos outros, e por isso ser capaz de fazer a diferença.
A sacudir os meus temores, a sair do meu casulo, a dar mais um passo em terra de ninguém, e por isso mesmo acabar por tocar a vida de alguém.
Gosto de quem me força a quebrar a minhas barreiras e deixar sair a fera que também me habita, a rugir as minhas mágoas e revoltas, a dizer aquilo que penso sem pudores, sem filtros, sem retoques.
A mostrar-me inteira e sem artifícios.
Gosto de quem me faz crescer.