Jogo de xadrêz
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O teu olhar persegue-me.
Queima-me a nuca quando estou de costas. Encandeia-me quando me viro para ti. Enfeitiça-me quando sorris. Aquece-me quando me percorre.
Está impresso na minha memória com tinta indelével, assalta-me a qualquer hora do dia, assombra os meus sonhos mais profundos.
Os teus olhos despem-me quando me observas, e fazem-me perguntas que não chegam aos teus lábios.
E os meus olhos respondem aos teus, num namoro recorrente e mudo, em que nenhum de nós dois está disposto a capitular.
Olha para mim. Olha bem para mim.
Eu sou mais do que apenas um objecto de desejo. Sou mais do que uma simples projecção dos teus ideais, ou uma boneca insuflada pela tua imaginação. Sou mais do que aquela imagem que moldaste de mim.
Eu sou de carne e osso, humana e falível como tu e toda a gente.
Tenho bagagem e sentimentos, sonhos e caprichos, objectivos e preferências. Tenho vida própria, vontade própria e uma cabeça pensante.
Tenho forças que até eu desconheço e momentos de intuição avassaladora.
Tenho dentro de mim buracos negros que às vezes me consomem e sóis que irradiam quando estou feliz.
Por isso, olha para mim.
Olha realmente para mim e verás que, afinal, tu não sabes quem eu sou.
No princípio é o desejo. Uma vontade de outros lugares, de outros cheiros e sabores. Uma urgência em sair da rotina. Uma necessidade de gestos e olhares diferentes.
Depois vem o sonho. A memória de uma fotografia colorida, de um texto lido em criança ou uma revista folheada anos atrás. O exercício da imaginação que de repente se transforma em ansiedade.
Vou atrás do chamamento e tomo a minha decisão. A partir daí já não há retorno. Fico febril de impaciência. Leio, pesquiso, procuro. Escolho o local, a época, o mês. Faço contas, traço limites. Analiso possibilidades. Estabeleço comparações. Planeio ao pormenor, anoto o que me parece mais importante – mas com o cuidado de deixar espaço para o imprevisto, para o improviso, para a surpresa. Recolho informações sem fim, escrevo, imprimo… Fico obcecada e frenética.
A tranquilidade só chega no momento em que corro o fecho da mala. Respiro fundo, simultaneamente com alívio e satisfação. Olho em volta, despeço-me mentalmente, pego nas coisas, tranco a porta depois de sair.
Quando desço as escadas o meu espírito já está longe, precedendo-me no espaço e no tempo.
Sinto-me leve e feliz. Estou a caminho. Vou viajar.
Tu, sonhador constante…
Que revives uma e outra vez a tua infância protegida de pássaro no ninho;
que aspiras a momentos de glória aclamada por multidões em êxtase, a feitos épicos plasmados nos jornais e cantados em estrofes;
que imaginas amores perfeitos em harmonia cósmica permanente, como se num casulo suspenso no tempo e no espaço;
que suspiras por uma mulher moldada à tua imagem e desejos, uma alma gémea da tua, que te acolha nos seus braços e te inspire altos voos;
que anseias por paisagens longínquas em terras sonhadas, onde o mar e o sol são omnipresentes e a alegria flui no ar que se respira;
que sonhas com um mundo mais justo e compassivo, em que os valores espirituais sejam a estrela-guia e a igualdade algo mais do que uma palavra vã.
Desce por um momento da tua nuvem…
Firma os teus pés descalços no solo de terra vermelha e sente o calor que dela emana;
deixa-te envolver pela brisa fresca que o oceano traz em cada fim de tarde de Verão;
aspira o cheiro da relva acabada de cortar num jardim, o perfume quente e doce de uma rosa de Maio;
observa os pardais saltitando em busca de migalhas, o voo das andorinhas inebriadas de Primavera, os pilritos que vagueiam entre as rochas à beira-mar;
enche os olhos com pores-do-sol em tons quentes de rosa e laranja, e com céus azuis brilhantes de dias de Inverno;
escuta o riso claro de um bebé no seu banho, os gritos das crianças felizes que brincam à apanhada no recreio, a melodia ensaiada por um melro madrugador na árvore ao pé da tua janela;
descobre o sabor de um morango colhido de manhã cedo, a textura suave de uma sopa de legumes cremosa, o travo forte de um café acabado de fazer;
aceita o carinho de um abraço bem apertado, de um beijo com sentimento, de uma mão calorosa no teu ombro.
E só então irás realmente começar a viver.