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A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

Manhã de chuva

 

Há qualquer coisa de paz numa manhã de chuva.

Qualquer coisa de quietude, de sossego, como se a natureza estivesse completamente concentrada em despejar chuva às catadupas e o mundo inteiro parasse para assistir.

Qualquer coisa de imobilidade, de letargia, como se um soporífero se insinuasse lentamente, toldando os movimentos, e apenas o olhar permanecesse, fixo, mesmerizado pela chuva que cai, o espírito embotado, paralisado.

Qualquer coisa de fascinante numa manifestação tão comum e no entanto tão incontrolável, tão facilmente explicada pelas leis da física e da química, e ao mesmo tempo tão para lá da simples compreensão.

Qualquer coisa de melancolia, de pequenina dor agradável, de abandono e solitude, mas também de aconchego, de envolvimento.

Há qualquer coisa numa manhã de chuva que me faz sentir de regresso ao útero.

 

 

Atreve-te

 

Sim, sei que gostas do que vês. Percebe-se isso pela forma como me olhas de cima a baixo enquanto um sorriso aflora aos teus olhos.

Mas o que estás a ver é apenas o invólucro. O melhor de mim está mesmo lá dentro. Protegido, reservado só para algumas pessoas, aquelas que querem realmente saber quem eu sou e o que me move. Aquelas que se interessam e querem ver o que está para lá do meu simples exterior.

E se queres mesmo conhecer-me, atreve-te.

Atreve-te a olhar bem fundo nos meus olhos, porque às vezes eles dizem mais do que os meus lábios.

Atreve-te a ouvir-me, a encontrar no tom da minha voz as subtilezas que denunciam as minhas paixões e os meus desapontamentos.

Atreve-te a tocar-me, pois só assim te aperceberás da temperatura da minha pele.

Atreve-te a dar-me a mão e deixa que eu te leve a descobrir paisagens infinitas, templos escondidos e sorrisos com alma.

Atreve-te a conhecer as minhas memórias e os meus sonhos, porque o passado é a lava que me moldou e o futuro a opala em que estou a transformar-me.

Atreve-te a fazeres de mim o teu livro de cabeceira.

Atreve-te a decifrar-me.

 

Desconhecidos

 

Assim que entro, procuro-te com os olhos e só descanso quando finalmente situo a tua figura no meio das pessoas que nos rodeiam. Trocamos olhares, tu já estavas a fixar-me porque certamente me viste primeiro. Será que também esperavas com ansiedade aquele momento, tal como eu espero todos os dias?

Não me recordo bem de quando reparei em ti pela primeira vez. Terá sido há dois anos, há três, há mais? Sei que nos cruzámos na rua e te fixei, e depois continuámos a cruzar-nos uma e outra vez, eu a caminho do trabalho numa direcção, tu na direcção oposta, certamente também a caminho do teu. Lembro-me de que um dia olhaste a direito para mim e sorriste levemente, talvez nesse dia eu tivesse um ar feliz ou estivesse também a rir-me de qualquer coisa.

E houve aquela vez em que passámos um pelo outro a uma hora inabitual, e descortinei perfeitamente no teu olhar primeiro o reconhecimento e a seguir a surpresa – como se fôssemos dois amigos que se encontram por acaso numa cidade estrangeira.

Depois os nossos percursos passaram a coincidir durante alguns minutos, e foi nessa altura que tive a certeza de que tu davas pela minha presença, pela minha existência, tal como eu dava pela tua. Foi a partir daí que adoptámos o nosso ritual de nos cumprimentarmos sem palavras todas as manhãs e as trocas de olhares furtivos entre um e outro aumentaram em frequência.

Há dias demos por nós ao lado um do outro, uma coincidência. Estavas tão perto de mim que consegui aperceber-me do teu perfume. Será que também notaste o meu? A minha visão periférica mostrou-me que te viraste quase completamente para mim, talvez quisesses observar-me melhor, assim mais de perto, radiografar os pormenores do meu rosto, os jeitos do meu cabelo… Talvez até quisesses meter conversa comigo. Mas a minha timidez tolheu-me o raciocínio e os movimentos, e eu não consegui olhar-te, nem sequer de soslaio, a não ser quando finalmente te viraste para sair. Aí cheguei-me um pouco mais para o teu lado, tentando aspirar os resquícios da tua presença, quiçá mostrar-me menos ingrata pela tua atenção, agora que estavas de costas e eu já não sentia o teu olhar fixo em mim. Antes de saíres, ainda rodaste a cabeça na minha direcção uma ou duas vezes, para eu ficar no teu campo de visão, e depois seguiste o teu rumo, que o tempo e as responsabilidades não se compadecem de romantismos mudos.

Talvez as voltas da vida um dia nos coloquem frente-a-frente, ou talvez nos afastem sem retorno. Não sei nada de ti e tu não sabes nada de mim. Posso imaginar-te à minha vontade, moldar-te consoante os meus caprichos, és uma imagem de carne e osso à qual posso dar a consistência que eu bem quiser. Mas não quero. Não quero despersonalizar-te. Afinal, tu és alguém que pensa e sente e tem a sua própria vida, assim como eu tenho a minha, os nossos caminhos apenas se tocam tangencialmente de vez em quando.

E é isto afinal o que nós somos: já não dois estranhos, mas ainda – e talvez para sempre – dois desconhecidos.

 

Sou

Sou única na minha diversidade.

Sou inteira nas minhas múltiplas facetas.

Sou indivisa na soma das minhas partes.

 

Sou a árvore invisível no meio da floresta.

Sou a pegada na areia que o mar levou.

Sou a chuva que a terra sequiosa consumiu.

 

Sou um coração que pensa e um cérebro que sente.

Sou cinco sentidos assoberbados de espanto.

Sou pele sobre tecidos e sangue em constante movimento.

 

Sou tudo e sou nada.

Estou só de passagem.

Sou tanto, e no entanto,

sou apenas eu.

 

Pequeno-almoço com os pássaros

 

Hoje tomei o pequeno-almoço com os pássaros.

O dia clareava devagar, um céu brilhante mas ainda sem sol à vista.

A caneca de café com leite aquecia-me as mãos, a manteiga derretia na torrada.

Andorinhas cruzavam a janela grande da cozinha em voos rápidos, imitando flechas negras.

Um pintassilgo lançou no ar a sua canção operática, feita de trinados e gorjeios inimitáveis, sem dar uma única fífia.

Veio depois o arrulhar de uma rola, não sei se vadia ou cativa, aquele “cucurru” cadenciado e hipnotizante.

Na acalmia que se seguiu, a ausência de sons humanos ainda deixou que subisse até mim o piar de alguns pardais, habitantes regulares do jardim.

Esta manhã prolonguei mais do que o habitual a minha primeira refeição do dia, deixei-me ficar mais algum tempo a aproveitar a vida.

Porque hoje tomei o pequeno-almoço com os pássaros, e soube-me bem.

 

 

 

Eu queria a Primavera

 

Eu queria a Primavera.

Queria um céu límpido, onde apenas um jacto cintilante rompesse a harmonia do azul, no seu voo rumo ao desconhecido.

Queria um raio de sol brilhante e morno atravessando o vidro da janela e deixando a sua marca na madeira do chão da sala.

Queria um campo verde a perder de vista, pontilhado de azedas radiosas e papoilas vibrantes, que um melro manchasse de negro saltitante e acordasse com o seu canto.

Queria a alvura de um lençol secando ao ar livre, só levemente agitado por uma brisa transportando o cheiro das amendoeiras em flor.

Queria sorrisos abertos nos rostos das pessoas com quem me cruzo, e gargalhadas francas a quebrarem o silêncio da tarde amena.

Queria os sons agudos de crianças a brincarem no parque, de campainhas de bicicletas pedaladas por pés pequenos, de bolas chutadas entre irmãos.

Queria uma porta escancarada no meu coração sonâmbulo, onde entrassem emoções e saíssem sentimentos, um coração a bater forte e com vontade.

Eu queria muito.

Mas lá fora há apenas um dia cinzento e um céu que chora lágrimas grossas.

 

 

Sonhador

 

Tu, sonhador constante…

 

Que revives uma e outra vez a tua infância protegida de pássaro no ninho;

que aspiras a momentos de glória aclamada por multidões em êxtase, a feitos épicos plasmados nos jornais e cantados em estrofes;

que imaginas amores perfeitos em harmonia cósmica permanente, como se num casulo suspenso no tempo e no espaço;

que suspiras por uma mulher moldada à tua imagem e desejos, uma alma gémea da tua, que te acolha nos seus braços e te inspire altos voos;

que anseias por paisagens longínquas em terras sonhadas, onde o mar e o sol são omnipresentes e a alegria flui no ar que se respira;

que sonhas com um mundo mais justo e compassivo, em que os valores espirituais sejam a estrela-guia e a igualdade algo mais do que uma palavra vã.

 

Desce por um momento da tua nuvem…

 

Firma os teus pés descalços no solo de terra vermelha e sente o calor que dela emana;

deixa-te envolver pela brisa fresca que o oceano traz em cada fim de tarde de Verão;

aspira o cheiro da relva acabada de cortar num jardim, o perfume quente e doce de uma rosa de Maio;

observa os pardais saltitando em busca de migalhas, o voo das andorinhas inebriadas de Primavera, os pilritos que vagueiam entre as rochas à beira-mar;

enche os olhos com pores-do-sol em tons quentes de rosa e laranja, e com céus azuis brilhantes de dias de Inverno;

escuta o riso claro de um bebé no seu banho, os gritos das crianças felizes que brincam à apanhada no recreio, a melodia ensaiada por um melro madrugador na árvore ao pé da tua janela;

descobre o sabor de um morango colhido de manhã cedo, a textura suave de uma sopa de legumes cremosa, o travo forte de um café acabado de fazer;

aceita o carinho de um abraço bem apertado, de um beijo com sentimento, de uma mão calorosa no teu ombro.

 

E só então irás realmente começar a viver.

 

 

 

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