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A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

A falta que me fazes

Sinto a tua falta.

Sinto falta do teu sorriso travesso e da tua gargalhada fácil. Do som terno do meu nome dito pela tua voz. Do aconchego caseiro do teu abraço apertado.

Falta de sentir o sopro morno do teu hálito no meu pescoço. O peso bom do teu corpo sobre o meu. A urgência da tua língua na minha pele. A fome dos teus beijos.

Sinto falta dos teus olhares cheios de significado. Das tuas carícias que me segredam segundas intenções. Das nossas conversas intermináveis noite dentro, desaguando em manhãs sonolentas e monossilábicas no conforto dos lençóis.

Antecipo a tua falta mesmo quando ainda não foste embora. Adivinho as saudades que vou sentir na tua ausência. Pressinto o vazio dos meus dias sem ti. A dor de sentir que perdi uma parte de mim.

Ainda estás aqui, mas já sinto a tua falta.

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O teu olhar

O teu olhar persegue-me.

Queima-me a nuca quando estou de costas. Encandeia-me quando me viro para ti. Enfeitiça-me quando sorris. Aquece-me quando me percorre.

Está impresso na minha memória com tinta indelével, assalta-me a qualquer hora do dia, assombra os meus sonhos mais profundos.

Os teus olhos despem-me quando me observas, e fazem-me perguntas que não chegam aos teus lábios.

E os meus olhos respondem aos teus, num namoro recorrente e mudo, em que nenhum de nós dois está disposto a capitular.

 

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Olha para mim

 

Olha para mim. Olha bem para mim.

Eu sou mais do que apenas um objecto de desejo. Sou mais do que uma simples projecção dos teus ideais, ou uma boneca insuflada pela tua imaginação. Sou mais do que aquela imagem que moldaste de mim.

Eu sou de carne e osso, humana e falível como tu e toda a gente.

Tenho bagagem e sentimentos, sonhos e caprichos, objectivos e preferências. Tenho vida própria, vontade própria e uma cabeça pensante.

Tenho forças que até eu desconheço e momentos de intuição avassaladora.

Tenho dentro de mim buracos negros que às vezes me consomem e sóis que irradiam quando estou feliz.

Por isso, olha para mim.

Olha realmente para mim e verás que, afinal, tu não sabes quem eu sou.

 

 

 

 

Atreve-te

 

Sim, sei que gostas do que vês. Percebe-se isso pela forma como me olhas de cima a baixo enquanto um sorriso aflora aos teus olhos.

Mas o que estás a ver é apenas o invólucro. O melhor de mim está mesmo lá dentro. Protegido, reservado só para algumas pessoas, aquelas que querem realmente saber quem eu sou e o que me move. Aquelas que se interessam e querem ver o que está para lá do meu simples exterior.

E se queres mesmo conhecer-me, atreve-te.

Atreve-te a olhar bem fundo nos meus olhos, porque às vezes eles dizem mais do que os meus lábios.

Atreve-te a ouvir-me, a encontrar no tom da minha voz as subtilezas que denunciam as minhas paixões e os meus desapontamentos.

Atreve-te a tocar-me, pois só assim te aperceberás da temperatura da minha pele.

Atreve-te a dar-me a mão e deixa que eu te leve a descobrir paisagens infinitas, templos escondidos e sorrisos com alma.

Atreve-te a conhecer as minhas memórias e os meus sonhos, porque o passado é a lava que me moldou e o futuro a opala em que estou a transformar-me.

Atreve-te a fazeres de mim o teu livro de cabeceira.

Atreve-te a decifrar-me.

 

Paixão

 

Caí de quatro quando o vi. Como se tivesse sido fulminada por um raio. Fiquei pregada ao chão, mesmerizada, incapaz de raciocinar. Aplicam-se a mim todos os lugares-comuns habituais para descrever uma paixão à primeira vista. E provavelmente mais alguns que ainda não foram usados.

Não foram os olhos dele, tapados por óculos escuros. Também não foi o corpo, disfarçado pelas roupas meio largas, nem foram as mãos, escondidas nos bolsos das calças.

Terá sido talvez o seu sorriso, luminoso e quente como um dia de Verão. Ou tão só a sua presença, a sua aura de confiança, a forma como entrou e ficou a olhar. Simplesmente a olhar e a sorrir.

A partir desse momento, tudo à minha volta como que se esbateu, e fiquei incapaz de afastar os olhos dele. Como se ele fosse o pólo norte da minha agulha magnética, o farol que rompe a escuridão do oceano onde eu navegava, ele planeta principal e eu apenas um satélite gravitando em seu redor. Apaixonei-me sem razão, sem controlo e sem sequer me aperceber. Desapareceram todas as minhas prioridades, porque o meu único objecto de desejo passou a ser ele, um simples desconhecido, um estranho cuja existência até então eu ignorava completamente e de quem nada sabia.

Foi assim que me apaixonei sem remédio e me deixei afogar naquela paixão. Deixei-me ir até ao fundo, privada de qualquer possibilidade de salvação, porque contrariar o que sentia teria sido impossível, mesmo que quisesse. Deixei que a paixão me esvaziasse, me consumisse até já nada restar de mim. Apenas sobreviveram as cinzas do que eu tinha sido.

E só nessa altura, qual fénix, eu pude renascer. Porque esta paixão foi como a chama de um fósforo – começou com uma explosão, mas ardeu rapidamente até ao fim, e nada sobrou para a alimentar. Aqueceu-me o coração por algum tempo, ofereceu-me um novo fôlego, e dela saiu uma mulher renovada e mais forte.

Às vezes, a vida sabe o que faz. E faz bem.

 

 

Final de tarde

 

Há poucas coisas melhores do que o final de uma tarde quente de Verão.

Chegar a casa e descalçar os sapatos, sentir a frescura que sobe do chão, fechar a porta e ficar por uns momentos na penumbra, respirar fundo.

Abrir as janelas do quarto de par em par e fazer a cama de lavado, cheirar o aroma a amaciador dos lençóis, a brisa morna que vem da rua agita os cortinados enquanto ando em volta da cama.

Encher de água um regador plástico colorido e alimentar a terra já seca das plantas que habitam os vasos do alpendre.

Tomar um duche pouco quente com a janela entreaberta, passar a toalha ao de leve pelo corpo para ficar com a pele ainda húmida, que o calor vai acabar de a enxugar em poucos minutos.

Depois sentar-me na varanda com um livro, deixar o cabelo secar ao ar livre, o sol descendo devagarinho até pousar no telhado da casa em frente e a seguir desaparecer.

O jantar é ligeiro e termina com um gelado fresco e macio, um dos meus CDs favoritos gira no leitor e fornece a banda sonora perfeita, enquanto o crepúsculo pinta de laranja e rosa o horizonte.

A vida tem destes momentos perfeitos.

 

Desconhecidos

 

Assim que entro, procuro-te com os olhos e só descanso quando finalmente situo a tua figura no meio das pessoas que nos rodeiam. Trocamos olhares, tu já estavas a fixar-me porque certamente me viste primeiro. Será que também esperavas com ansiedade aquele momento, tal como eu espero todos os dias?

Não me recordo bem de quando reparei em ti pela primeira vez. Terá sido há dois anos, há três, há mais? Sei que nos cruzámos na rua e te fixei, e depois continuámos a cruzar-nos uma e outra vez, eu a caminho do trabalho numa direcção, tu na direcção oposta, certamente também a caminho do teu. Lembro-me de que um dia olhaste a direito para mim e sorriste levemente, talvez nesse dia eu tivesse um ar feliz ou estivesse também a rir-me de qualquer coisa.

E houve aquela vez em que passámos um pelo outro a uma hora inabitual, e descortinei perfeitamente no teu olhar primeiro o reconhecimento e a seguir a surpresa – como se fôssemos dois amigos que se encontram por acaso numa cidade estrangeira.

Depois os nossos percursos passaram a coincidir durante alguns minutos, e foi nessa altura que tive a certeza de que tu davas pela minha presença, pela minha existência, tal como eu dava pela tua. Foi a partir daí que adoptámos o nosso ritual de nos cumprimentarmos sem palavras todas as manhãs e as trocas de olhares furtivos entre um e outro aumentaram em frequência.

Há dias demos por nós ao lado um do outro, uma coincidência. Estavas tão perto de mim que consegui aperceber-me do teu perfume. Será que também notaste o meu? A minha visão periférica mostrou-me que te viraste quase completamente para mim, talvez quisesses observar-me melhor, assim mais de perto, radiografar os pormenores do meu rosto, os jeitos do meu cabelo… Talvez até quisesses meter conversa comigo. Mas a minha timidez tolheu-me o raciocínio e os movimentos, e eu não consegui olhar-te, nem sequer de soslaio, a não ser quando finalmente te viraste para sair. Aí cheguei-me um pouco mais para o teu lado, tentando aspirar os resquícios da tua presença, quiçá mostrar-me menos ingrata pela tua atenção, agora que estavas de costas e eu já não sentia o teu olhar fixo em mim. Antes de saíres, ainda rodaste a cabeça na minha direcção uma ou duas vezes, para eu ficar no teu campo de visão, e depois seguiste o teu rumo, que o tempo e as responsabilidades não se compadecem de romantismos mudos.

Talvez as voltas da vida um dia nos coloquem frente-a-frente, ou talvez nos afastem sem retorno. Não sei nada de ti e tu não sabes nada de mim. Posso imaginar-te à minha vontade, moldar-te consoante os meus caprichos, és uma imagem de carne e osso à qual posso dar a consistência que eu bem quiser. Mas não quero. Não quero despersonalizar-te. Afinal, tu és alguém que pensa e sente e tem a sua própria vida, assim como eu tenho a minha, os nossos caminhos apenas se tocam tangencialmente de vez em quando.

E é isto afinal o que nós somos: já não dois estranhos, mas ainda – e talvez para sempre – dois desconhecidos.

 

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