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A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

Final de tarde

 

Há poucas coisas melhores do que o final de uma tarde quente de Verão.

Chegar a casa e descalçar os sapatos, sentir a frescura que sobe do chão, fechar a porta e ficar por uns momentos na penumbra, respirar fundo.

Abrir as janelas do quarto de par em par e fazer a cama de lavado, cheirar o aroma a amaciador dos lençóis, a brisa morna que vem da rua agita os cortinados enquanto ando em volta da cama.

Encher de água um regador plástico colorido e alimentar a terra já seca das plantas que habitam os vasos do alpendre.

Tomar um duche pouco quente com a janela entreaberta, passar a toalha ao de leve pelo corpo para ficar com a pele ainda húmida, que o calor vai acabar de a enxugar em poucos minutos.

Depois sentar-me na varanda com um livro, deixar o cabelo secar ao ar livre, o sol descendo devagarinho até pousar no telhado da casa em frente e a seguir desaparecer.

O jantar é ligeiro e termina com um gelado fresco e macio, um dos meus CDs favoritos gira no leitor e fornece a banda sonora perfeita, enquanto o crepúsculo pinta de laranja e rosa o horizonte.

A vida tem destes momentos perfeitos.

 

Febre

 

No princípio é o desejo. Uma vontade de outros lugares, de outros cheiros e sabores. Uma urgência em sair da rotina. Uma necessidade de gestos e olhares diferentes.

Depois vem o sonho. A memória de uma fotografia colorida, de um texto lido em criança ou uma revista folheada anos atrás. O exercício da imaginação que de repente se transforma em ansiedade.

Vou atrás do chamamento e tomo a minha decisão. A partir daí já não há retorno. Fico febril de impaciência. Leio, pesquiso, procuro. Escolho o local, a época, o mês. Faço contas, traço limites. Analiso possibilidades. Estabeleço comparações. Planeio ao pormenor, anoto o que me parece mais importante – mas com o cuidado de deixar espaço para o imprevisto, para o improviso, para a surpresa. Recolho informações sem fim, escrevo, imprimo… Fico obcecada e frenética.

A tranquilidade só chega no momento em que corro o fecho da mala. Respiro fundo, simultaneamente com alívio e satisfação. Olho em volta, despeço-me mentalmente, pego nas coisas, tranco a porta depois de sair.

Quando desço as escadas o meu espírito já está longe, precedendo-me no espaço e no tempo.

Sinto-me leve e feliz. Estou a caminho. Vou viajar.

 

Pequeno-almoço com os pássaros

 

Hoje tomei o pequeno-almoço com os pássaros.

O dia clareava devagar, um céu brilhante mas ainda sem sol à vista.

A caneca de café com leite aquecia-me as mãos, a manteiga derretia na torrada.

Andorinhas cruzavam a janela grande da cozinha em voos rápidos, imitando flechas negras.

Um pintassilgo lançou no ar a sua canção operática, feita de trinados e gorjeios inimitáveis, sem dar uma única fífia.

Veio depois o arrulhar de uma rola, não sei se vadia ou cativa, aquele “cucurru” cadenciado e hipnotizante.

Na acalmia que se seguiu, a ausência de sons humanos ainda deixou que subisse até mim o piar de alguns pardais, habitantes regulares do jardim.

Esta manhã prolonguei mais do que o habitual a minha primeira refeição do dia, deixei-me ficar mais algum tempo a aproveitar a vida.

Porque hoje tomei o pequeno-almoço com os pássaros, e soube-me bem.

 

 

 

A lua é a mesma

 

Noite morna de Verão num ano qualquer. A lua sobe no horizonte, assomando por detrás da muralha do forte. Cheia e brilhante, deixa no mar de breu um rasto leitoso.

Os teus braços rodeiam os meus ombros, o teu rosto encostado ao meu, os dois olhando na mesma direcção.

Um cenário de paz, uma sensação de segurança, o meu coração preenchido e em sossego.

É isto a felicidade.

 

Noite fresca de Outono alguns meses depois. A lua mostra-se entre nuvens esparsas que mancham o céu num dégradé de tons cinzentos, pairando sobre os telhados. Cheia e com um halo à volta, prometendo chuva.

Estou atrás das vidraças, olhando as árvores e a serra, sentindo o frio da noite que se instala e as saudades dos braços que estão longe, roubados aos meus pelo dever.

Longe daqui há uma ilha onde a mesma lua se ergue atrás de um anfiteatro natural iluminado por milhares de luzes, e onde tu a prendes para sempre numa fotografia.

A minha felicidade está a mil quilómetros de distância.

 

Noite gélida de Inverno vários anos passados. A lua exibe-se sobre o rio e a ponte, atraindo os olhares. Cheia e bela, dona do céu nocturno.

Estou sozinha dentro do carro que conduzo rumo a mais uma noite longa. Já há muito tempo que não sei o que é sentir os teus braços à volta dos meus, desde que partiram para outros abraços.

A noite está calma e eu conduzo descontraída, mas por vezes o pensamento foge-me para outras realidades.

O meu coração está adormecido e a felicidade é apenas sonhada.

 

Noite perfumada de Primavera num ano indefinido. A lua paira por cima das árvores, iluminando a noite. Cheia e provocante, enchendo a noite de promessas.

Passo o portão do parque e no espaço amplo e aberto do pátio empedrado distingo logo a tua silhueta. Dás-me um beijo de boas vindas e os teus braços fecham-se sobre as minhas costas.

Aspiro o teu cheiro ainda familiar e o mundo volta a fazer sentido.

A minha felicidade regressou. E a lua é (ainda e sempre) a mesma.

 

  

 

 

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