Caí de quatro quando o vi. Como se tivesse sido fulminada por um raio. Fiquei pregada ao chão, mesmerizada, incapaz de raciocinar. Aplicam-se a mim todos os lugares-comuns habituais para descrever uma paixão à primeira vista. E provavelmente mais alguns que ainda não foram usados.
Não foram os olhos dele, tapados por óculos escuros. Também não foi o corpo, disfarçado pelas roupas meio largas, nem foram as mãos, escondidas nos bolsos das calças.
Terá sido talvez o seu sorriso, luminoso e quente como um dia de Verão. Ou tão só a sua presença, a sua aura de confiança, a forma como entrou e ficou a olhar. Simplesmente a olhar e a sorrir.
A partir desse momento, tudo à minha volta como que se esbateu, e fiquei incapaz de afastar os olhos dele. Como se ele fosse o pólo norte da minha agulha magnética, o farol que rompe a escuridão do oceano onde eu navegava, ele planeta principal e eu apenas um satélite gravitando em seu redor. Apaixonei-me sem razão, sem controlo e sem sequer me aperceber. Desapareceram todas as minhas prioridades, porque o meu único objecto de desejo passou a ser ele, um simples desconhecido, um estranho cuja existência até então eu ignorava completamente e de quem nada sabia.
Foi assim que me apaixonei sem remédio e me deixei afogar naquela paixão. Deixei-me ir até ao fundo, privada de qualquer possibilidade de salvação, porque contrariar o que sentia teria sido impossível, mesmo que quisesse. Deixei que a paixão me esvaziasse, me consumisse até já nada restar de mim. Apenas sobreviveram as cinzas do que eu tinha sido.
E só nessa altura, qual fénix, eu pude renascer. Porque esta paixão foi como a chama de um fósforo – começou com uma explosão, mas ardeu rapidamente até ao fim, e nada sobrou para a alimentar. Aqueceu-me o coração por algum tempo, ofereceu-me um novo fôlego, e dela saiu uma mulher renovada e mais forte.
Assim que entro, procuro-te com os olhos e só descanso quando finalmente situo a tua figura no meio das pessoas que nos rodeiam. Trocamos olhares, tu já estavas a fixar-me porque certamente me viste primeiro. Será que também esperavas com ansiedade aquele momento, tal como eu espero todos os dias?
Não me recordo bem de quando reparei em ti pela primeira vez. Terá sido há dois anos, há três, há mais? Sei que nos cruzámos na rua e te fixei, e depois continuámos a cruzar-nos uma e outra vez, eu a caminho do trabalho numa direcção, tu na direcção oposta, certamente também a caminho do teu. Lembro-me de que um dia olhaste a direito para mim e sorriste levemente, talvez nesse dia eu tivesse um ar feliz ou estivesse também a rir-me de qualquer coisa.
E houve aquela vez em que passámos um pelo outro a uma hora inabitual, e descortinei perfeitamente no teu olhar primeiro o reconhecimento e a seguir a surpresa – como se fôssemos dois amigos que se encontram por acaso numa cidade estrangeira.
Depois os nossos percursos passaram a coincidir durante alguns minutos, e foi nessa altura que tive a certeza de que tu davas pela minha presença, pela minha existência, tal como eu dava pela tua. Foi a partir daí que adoptámos o nosso ritual de nos cumprimentarmos sem palavras todas as manhãs e as trocas de olhares furtivos entre um e outro aumentaram em frequência.
Há dias demos por nós ao lado um do outro, uma coincidência. Estavas tão perto de mim que consegui aperceber-me do teu perfume. Será que também notaste o meu? A minha visão periférica mostrou-me que te viraste quase completamente para mim, talvez quisesses observar-me melhor, assim mais de perto, radiografar os pormenores do meu rosto, os jeitos do meu cabelo… Talvez até quisesses meter conversa comigo. Mas a minha timidez tolheu-me o raciocínio e os movimentos, e eu não consegui olhar-te, nem sequer de soslaio, a não ser quando finalmente te viraste para sair. Aí cheguei-me um pouco mais para o teu lado, tentando aspirar os resquícios da tua presença, quiçá mostrar-me menos ingrata pela tua atenção, agora que estavas de costas e eu já não sentia o teu olhar fixo em mim. Antes de saíres, ainda rodaste a cabeça na minha direcção uma ou duas vezes, para eu ficar no teu campo de visão, e depois seguiste o teu rumo, que o tempo e as responsabilidades não se compadecem de romantismos mudos.
Talvez as voltas da vida um dia nos coloquem frente-a-frente, ou talvez nos afastem sem retorno. Não sei nada de ti e tu não sabes nada de mim. Posso imaginar-te à minha vontade, moldar-te consoante os meus caprichos, és uma imagem de carne e osso à qual posso dar a consistência que eu bem quiser. Mas não quero. Não quero despersonalizar-te. Afinal, tu és alguém que pensa e sente e tem a sua própria vida, assim como eu tenho a minha, os nossos caminhos apenas se tocam tangencialmente de vez em quando.
E é isto afinal o que nós somos: já não dois estranhos, mas ainda – e talvez para sempre – dois desconhecidos.