A minha casa
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Há poucas coisas melhores do que o final de uma tarde quente de Verão.
Chegar a casa e descalçar os sapatos, sentir a frescura que sobe do chão, fechar a porta e ficar por uns momentos na penumbra, respirar fundo.
Abrir as janelas do quarto de par em par e fazer a cama de lavado, cheirar o aroma a amaciador dos lençóis, a brisa morna que vem da rua agita os cortinados enquanto ando em volta da cama.
Encher de água um regador plástico colorido e alimentar a terra já seca das plantas que habitam os vasos do alpendre.
Tomar um duche pouco quente com a janela entreaberta, passar a toalha ao de leve pelo corpo para ficar com a pele ainda húmida, que o calor vai acabar de a enxugar em poucos minutos.
Depois sentar-me na varanda com um livro, deixar o cabelo secar ao ar livre, o sol descendo devagarinho até pousar no telhado da casa em frente e a seguir desaparecer.
O jantar é ligeiro e termina com um gelado fresco e macio, um dos meus CDs favoritos gira no leitor e fornece a banda sonora perfeita, enquanto o crepúsculo pinta de laranja e rosa o horizonte.
A vida tem destes momentos perfeitos.
Hoje tomei o pequeno-almoço com os pássaros.
O dia clareava devagar, um céu brilhante mas ainda sem sol à vista.
A caneca de café com leite aquecia-me as mãos, a manteiga derretia na torrada.
Andorinhas cruzavam a janela grande da cozinha em voos rápidos, imitando flechas negras.
Um pintassilgo lançou no ar a sua canção operática, feita de trinados e gorjeios inimitáveis, sem dar uma única fífia.
Veio depois o arrulhar de uma rola, não sei se vadia ou cativa, aquele “cucurru” cadenciado e hipnotizante.
Na acalmia que se seguiu, a ausência de sons humanos ainda deixou que subisse até mim o piar de alguns pardais, habitantes regulares do jardim.
Esta manhã prolonguei mais do que o habitual a minha primeira refeição do dia, deixei-me ficar mais algum tempo a aproveitar a vida.
Porque hoje tomei o pequeno-almoço com os pássaros, e soube-me bem.
Abro a porta de casa e sou saudada pelo silêncio, abraçada pela ausência. O som dos meus sapatos no chão de tábua corrida marca o início de mais uma noite.
Flutua no ar um cheiro a frutos vermelhos que emana do difusor. Os estores estão corridos, imóveis na posição em que os deixei de manhã. Pouso a mala, repito pela milésima vez os gestos de todos dias, nem sempre pela mesma ordem, mas seguindo o fio condutor da minha linha de pensamento.
O corredor está mudo, a cozinha vazia. Não há recados na porta do frigorífico nem no espelho da casa de banho. E no roupeiro todas as peças são do mesmo sexo.
Coloco na mesa apenas um prato e um talher. Deito para o lixo uma única cápsula de café. As conversas sobre o dia que está a acabar só têm lugar dentro da minha cabeça; não se ouve o som de uma palavra ou de um riso.
Se o telefone chama, sou sempre eu quem vai atender. A minha voz é a única neste extremo da rede. No sofá reclina-se tão-somente o meu corpo, e só um par de olhos se fixa na televisão ou no computador.
Quando me deito, não há braços em volta dos meus ombros nem pernas entrecruzadas nas minhas. A cama está vazia. E fria.