Habituei-me a não me queixar. A dar sem esperar nada em troca. A cumprimentar toda a gente com um sorriso nos lábios, e responder “Tudo bem!” quando me perguntam como estou.
Habituei-me a estar sozinha e a ser independente. A decidir para onde vou, quando e com quem. E habituei-me a contar apenas comigo.
Habituei-me a oferecer o meu ombro para amparar quem não está bem e a dar a minha atenção a quem precisa de desabafar. E ao mesmo tempo habituei-me a guardar para mim os meus desgostos, a não mostrar quando estou triste, a encolher os ombros quando algo não corre como eu gostaria.
Habituei-me às desilusões e aos baldes de água fria. A fingir que não sou sensível a certas atitudes, quando na verdade elas me causam embaraço, tristeza e até mesmo dor. E habituei-me também ao olhar dos outros que apenas vê a superfície e não se interessa por conhecer o que está mais fundo.
Habituei-me a só chorar quando ninguém me vê. A amar em silêncio. A ansiar sem nada dizer. A calar quando me apetece gritar.
Habituei-me a ter vazia a outra metade da cama, a acordar só e a dar os bons dias a mim própria.
Habituei-me a deixar a minha vida seguir o seu rumo.
Habituei-me. Não gosto, mas habituei-me. A tal ponto que a maioria das vezes sinto que em mim habitam duas pessoas diferentes: aquela que eu sou, e a que os outros vêem. Ou que eu mostro. Tanto faz.
Habituei-me a tudo isto e até mais, e por vezes já nem distingo o hábito do monge, já nem sei se eu sou mesmo assim ou se apenas me habituei a ser.
Embrulhada no sono, procuro na cama o teu calor. Deslizo sobre o colchão ao encontro do teu corpo, ansiosa por ti.
Mas as minhas mãos só encontram o nada. A frieza dos lençóis rasga o véu da minha inconsciência. Acordo de repente. Como se batesse contra um muro, a realidade da tua partida atinge-me com força. Sou subitamente invadida por um vendaval de emoções e o terror trepa por mim até o negrume dos seus dedos rodear o meu coração e o apertar como se quisesse exauri-lo de todo o sangue.
Falta-me o ar, falta-me o norte, falta-me o chão debaixo de mim e estou a cair no vazio, sugada pelo buraco negro deixado pela tua ausência, pelo vórtice da dor que me submerge e subjuga, que me esvazia de toda a alma.
É mais um dia que começa, mas esta mulher que aqui está já não é aquela que viveu ao teu lado. É apenas um fantoche sem bonecreiro, um zombie descerebrado e de olhar vítreo que se levanta e se lava e se veste, que sai de casa e conduz e trabalha, que fala e até sorri, e aparenta ser uma pessoa quando na verdade nada mais é do que um corpo que sobrevive, simplesmente sobrevive, alimentado e movido pela débil esperança de que um destes dias tu decidas regressar.
Quero pousar a cabeça aí, nesse local onde por baixo pulsa o teu coração. Aspirar o odor isento de perfume que se solta do teu corpo. Deslizar as mãos sobre a pele que cobre a tua cintura.
Quero fazer do teu ombro a minha almofada, e entrar no sono embalada pelo sobe-e-desce da tua respiração.
Quero pousar o meu joelho na tua anca e tactear as tuas pernas com o meu pé, sentindo os contornos dos teus músculos sob os meus dedos.
Quero percorrer com os meus olhos cada milímetro do teu rosto, esquadrinhar cada poro, cada vinco, demorar-me na cor indefinida dos teus olhos, observar a curvatura das tuas pestanas; depois passar os meus lábios sobre o teu pescoço e o teu queixo, sentindo na ponta da língua um ligeiro sabor a sal, até desceres a tua boca para se encontrar com a minha num beijo sem limites.
E quando finalmente os meus sentidos e o meu corpo estiverem, por momentos, já saciados de te sentir, vou deixar que os meus olhos capitulem e se fechem, para então resvalar, pouco-a-pouco, sem me aperceber, até ao universo paralelo de outros sonhos.