Manhã cedo. A plataforma da estação está cheia de gente. Falta pouco para o comboio chegar.
Os altifalantes debitam o sinal sonoro que precede um aviso, e há um murmúrio colectivo. Já sabemos o que vamos ouvir: que o comboio foi suprimido e o próximo só passará dentro de um quarto de hora.
Sinto a irritação subir por mim acima. Vou chegar atrasada ao trabalho outra vez. Não que isso me traga grandes problemas, mas aborrece-me. Estas falhas são constantes, e agora nunca sabemos com o que podemos contar.
Como habitualmente, estou de auriculares nos ouvidos. Hoje é um programa de rádio que me faz companhia. Som leve e conversa animada. Começa a ouvir-se uma daquelas músicas de dança mais em voga, cheia de ritmo e energia.
E a magia acontece. De repente, noto que o ar está morno e o céu azul. À minha volta tudo parece adquirir um outro brilho. Sinto uma enorme vontade de mexer o corpo, de dançar, ali mesmo, no meio de toda aquela gente. Imagino-me às voltas, a abanar os braços, a bater os pés ao compasso da música. Imagino os olhares estupefactos das pessoas, os risos. Imagino que alguém se junta a mim, dançando também. Sorrio com a ideia.
Refreada pelo meu “grilo falante”, limito-me a oscilar um pouco a cabeça, marco o ritmo levemente com as mãos e um dos pés. A irritação passou. Sinto-me bem. Que se dane o comboio e o trabalho, já nem sequer penso nisso, simplesmente aproveito o momento.
É estranho este poder que a música tem sobre nós. A forma como reagimos a um simples conjunto de vibrações sonoras, ocorrência básica da física que no entanto tem o poder de nos transformar. E de transformar instantes da nossa vida.
O comboio atrasa-se ainda mais do que o previsto. Mas já não me incomodo. Estou viva e está um dia bonito. O resto não interessa.
As ruas de Lisboa sobem e descem serpenteando pelas colinas, e desdobram-se em escadinhas, becos e miradouros, desembocam em praças e rotundas, contornam jardins, museus e monumentos. Têm varandas e janelas floridas, balaustradas e portões de ferro forjado, portas de vidro, de madeira, de metal. Têm roupa estendida, nos bairros antigos, e fachadas com azulejos pintados à mão. Têm edifícios que se iluminam com mil cores quando cai a noite, e jacarandás que atapetam de roxo o chão no mês de Maio.
As ruas de Lisboa têm pedras soltas nos passeios de calçada portuguesa e paredes grafitadas. Têm mendigos de mão estendida e poças de água suja quando chove. Têm pombos sôfregos que correm de um lado para o outro, gaivotas desorientadas em telhados longe do rio, e bandos de estorninhos barulhentos e assustadiços. Têm tapumes de obras e andaimes, buracos traiçoeiros e tampas metálicas desniveladas no alcatrão. Têm árvores aqui e acolá, postes de iluminação e papeleiras, painéis com publicidade, toldos e néones de cores vivas.
Pelas ruas de Lisboa correm eléctricos amarelos ou vermelhos, e autocarros que eram laranja mas agora têm as cores da publicidade que ostentam. Passeiam carros anfíbios com focinho de hipopótamo, carochas descapotáveis de cores pastel, tuc-tucs decorados com imitação de azulejo, bicicletas com as mais variadas formas, e carrinhos que parecem de feira mas andam à solta enchendo a cidade de rateres. Ouvem-se buzinadelas e travagens, cheira a fumos de escape e o trânsito vira inferno de manhã e ao fim da tarde. As entradas do Metro são bocas cinzentas que engolem as pessoas uma a uma e depois as regurgitam em grandes golfadas.
Nas ruas de Lisboa há homens e mulheres que caminham apressados, o olhar perdido como zombies, a mente divagando sabe-se lá por onde. Há pessoas paradas a conversar, sentadas à espera de um transporte público, passeando vagarosamente enquanto olham as montras ou falando para o microfone do telemóvel. Há turistas de câmara ao pescoço e mapa na mão, estudantes de mochila às costas e ténis nos pés, crianças puxadas pelas mãos dos adultos. Há esplanadas cheias de gente quando o sol brilha, e chapéus abertos em correria quando chove.
Nas ruas de Lisboa flui a energia que anima uma cidade.
Gosto de animais. De todos. Mas em liberdade. Não gosto de os ver enjaulados, engaiolados. Penso que podia ser eu no lugar deles, e isso arrepia-me.
Gosto de sapatos. Adoro sapatos. No Verão, sandálias com tirinhas, “peep toes”, “slingbacks” com salto baixo e fininho. No Inverno, botas. Mas sem serem de cunha, por favor.
Gosto de batons de manteiga de cacau. E do meu corrector com três cores diferentes, que tapa todas as borbulhinhas e manchas e olheiras, e ajuda-me a ter um ar mais “composto”. Detesto bases espessas e maquilhagem a mais, que me dão a sensação de estar a usar uma máscara.
Gosto de marisco. De mangas ainda pouco doces. De sumos naturais. E de coisas doces, é o meu pecado. Não gosto de comida a saber muito a sal.
Gosto de óculos escuros. Somos inseparáveis, seja em que estação do ano for. Ao amanhecer, durante o dia, quase sempre ao crepúsculo, mas nunca à noite.
Gosto de sorrisos francos. Detesto mentiras.
Gosto de dançar. Mover o corpo instintivamente ao som da música, sem pensar em nada. E gosto da água. De olhar o mar, o rio, de andar de barco. São momentos felizes.
Gosto de sonhar. Com o que já vivi, e com aquilo que ainda irei viver. Sonhar com um mundo melhor e mais justo. Sonhar com um futuro em que todos possam concretizar os seus sonhos. Sonhar que esse dia possa ser já amanhã, ou para a semana.
Gosto de ser optimista. Frequentemente teimosa e saudosista, às vezes melancólica e quase sempre patética, mas optimista.
(Em jeito de resposta a este post da Framboesa, embora com atraso e fora do formato…)