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A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

A vida e outros acasos

A vida é uma coisa. O amor é outra. (Miguel Esteves Cardoso)

Desconhecidos

 

Assim que entro, procuro-te com os olhos e só descanso quando finalmente situo a tua figura no meio das pessoas que nos rodeiam. Trocamos olhares, tu já estavas a fixar-me porque certamente me viste primeiro. Será que também esperavas com ansiedade aquele momento, tal como eu espero todos os dias?

Não me recordo bem de quando reparei em ti pela primeira vez. Terá sido há dois anos, há três, há mais? Sei que nos cruzámos na rua e te fixei, e depois continuámos a cruzar-nos uma e outra vez, eu a caminho do trabalho numa direcção, tu na direcção oposta, certamente também a caminho do teu. Lembro-me de que um dia olhaste a direito para mim e sorriste levemente, talvez nesse dia eu tivesse um ar feliz ou estivesse também a rir-me de qualquer coisa.

E houve aquela vez em que passámos um pelo outro a uma hora inabitual, e descortinei perfeitamente no teu olhar primeiro o reconhecimento e a seguir a surpresa – como se fôssemos dois amigos que se encontram por acaso numa cidade estrangeira.

Depois os nossos percursos passaram a coincidir durante alguns minutos, e foi nessa altura que tive a certeza de que tu davas pela minha presença, pela minha existência, tal como eu dava pela tua. Foi a partir daí que adoptámos o nosso ritual de nos cumprimentarmos sem palavras todas as manhãs e as trocas de olhares furtivos entre um e outro aumentaram em frequência.

Há dias demos por nós ao lado um do outro, uma coincidência. Estavas tão perto de mim que consegui aperceber-me do teu perfume. Será que também notaste o meu? A minha visão periférica mostrou-me que te viraste quase completamente para mim, talvez quisesses observar-me melhor, assim mais de perto, radiografar os pormenores do meu rosto, os jeitos do meu cabelo… Talvez até quisesses meter conversa comigo. Mas a minha timidez tolheu-me o raciocínio e os movimentos, e eu não consegui olhar-te, nem sequer de soslaio, a não ser quando finalmente te viraste para sair. Aí cheguei-me um pouco mais para o teu lado, tentando aspirar os resquícios da tua presença, quiçá mostrar-me menos ingrata pela tua atenção, agora que estavas de costas e eu já não sentia o teu olhar fixo em mim. Antes de saíres, ainda rodaste a cabeça na minha direcção uma ou duas vezes, para eu ficar no teu campo de visão, e depois seguiste o teu rumo, que o tempo e as responsabilidades não se compadecem de romantismos mudos.

Talvez as voltas da vida um dia nos coloquem frente-a-frente, ou talvez nos afastem sem retorno. Não sei nada de ti e tu não sabes nada de mim. Posso imaginar-te à minha vontade, moldar-te consoante os meus caprichos, és uma imagem de carne e osso à qual posso dar a consistência que eu bem quiser. Mas não quero. Não quero despersonalizar-te. Afinal, tu és alguém que pensa e sente e tem a sua própria vida, assim como eu tenho a minha, os nossos caminhos apenas se tocam tangencialmente de vez em quando.

E é isto afinal o que nós somos: já não dois estranhos, mas ainda – e talvez para sempre – dois desconhecidos.

 

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