Queria um céu límpido, onde apenas um jacto cintilante rompesse a harmonia do azul, no seu voo rumo ao desconhecido.
Queria um raio de sol brilhante e morno atravessando o vidro da janela e deixando a sua marca na madeira do chão da sala.
Queria um campo verde a perder de vista, pontilhado de azedas radiosas e papoilas vibrantes, que um melro manchasse de negro saltitante e acordasse com o seu canto.
Queria a alvura de um lençol secando ao ar livre, só levemente agitado por uma brisa transportando o cheiro das amendoeiras em flor.
Queria sorrisos abertos nos rostos das pessoas com quem me cruzo, e gargalhadas francas a quebrarem o silêncio da tarde amena.
Queria os sons agudos de crianças a brincarem no parque, de campainhas de bicicletas pedaladas por pés pequenos, de bolas chutadas entre irmãos.
Queria uma porta escancarada no meu coração sonâmbulo, onde entrassem emoções e saíssem sentimentos, um coração a bater forte e com vontade.
Eu queria muito.
Mas lá fora há apenas um dia cinzento e um céu que chora lágrimas grossas.
Claro que já não era um coração novinho em folha. Tinha sofrido algumas amolgadelas ao longo dos anos e até mesmo um grande acidente. Mas tinha sido sempre cuidadosamente reparado, e naquela altura estava mesmo em óptimo estado.
Então um dia ela deu-lhe o seu coração. Porque ele era uma pessoa especial, um homem diferente que a pouco e pouco soubera conquistar-lhe a confiança e inspirar amor. Gostavam de estar juntos e de fazer coisas juntos. Ele dava-lhe conselhos atilados e ela retribuía ajudando-o em escolhas por vezes difíceis, quando ele não sabia o que decidir. Eram como a água e o vinho, diferentes nas suas essências mas funcionando bem em conjunto.
Quando ela lhe deu o seu coração, apenas pediu para ele o guardar enquanto quisesse, e que durante esse tempo o tratasse bem. E ele cumpriu o melhor possível. Às vezes, muito raramente, lá se descuidava e sem querer magoava-o um bocadinho. Mas eram coisas de pouca monta, e o coração dela depressa sarava, até porque ele se encarregava de reparar rapidamente o estrago feito. E assim, sem pressas, com o passar dos dias, o coração dela e o dele começaram a bater em sincronia – e quem olhava para eles percebia isso no brilho dos seus olhos e nos sorrisos que trocavam. Juntos construíam momentos felizes, que se prolongavam pelo tempo em que estavam separados. E seguiam as suas vidas de mãos dadas.
Mas um dia o passado vestiu-se de acaso e atravessou-se-lhes no caminho, e por culpa desse acaso ele partiu-lhe o coração. E porque esse passado se transformou no futuro por onde queria seguir, ele tomou um caminho diferente e o coração dela ficou por consertar. Ela ainda lhe pediu para ele lho devolver, mesmo no mau estado em que estava; mas ele esqueceu-se, ou fez-se esquecido, e levou-o com ele.
Agora ela tem um buraco no lugar onde antes estava o coração. Já tentou colocar nesse buraco outros corações que foi encontrando, mas nenhum se encaixou bem naquele espaço especial. Que ela vai assim enchendo de memórias e desejos, lágrimas e esperanças, pequenos nadas e grandes gestos, numa tentativa vã de preencher um vazio que não tem fim.
Que revives uma e outra vez a tua infância protegida de pássaro no ninho;
que aspiras a momentos de glória aclamada por multidões em êxtase, a feitos épicos plasmados nos jornais e cantados em estrofes;
que imaginas amores perfeitos em harmonia cósmica permanente, como se num casulo suspenso no tempo e no espaço;
que suspiras por uma mulher moldada à tua imagem e desejos, uma alma gémea da tua, que te acolha nos seus braços e te inspire altos voos;
que anseias por paisagens longínquas em terras sonhadas, onde o mar e o sol são omnipresentes e a alegria flui no ar que se respira;
que sonhas com um mundo mais justo e compassivo, em que os valores espirituais sejam a estrela-guia e a igualdade algo mais do que uma palavra vã.
Desce por um momento da tua nuvem…
Firma os teus pés descalços no solo de terra vermelha e sente o calor que dela emana;
deixa-te envolver pela brisa fresca que o oceano traz em cada fim de tarde de Verão;
aspira o cheiro da relva acabada de cortar num jardim, o perfume quente e doce de uma rosa de Maio;
observa os pardais saltitando em busca de migalhas, o voo das andorinhas inebriadas de Primavera, os pilritos que vagueiam entre as rochas à beira-mar;
enche os olhos com pores-do-sol em tons quentes de rosa e laranja, e com céus azuis brilhantes de dias de Inverno;
escuta o riso claro de um bebé no seu banho, os gritos das crianças felizes que brincam à apanhada no recreio, a melodia ensaiada por um melro madrugador na árvore ao pé da tua janela;
descobre o sabor de um morango colhido de manhã cedo, a textura suave de uma sopa de legumes cremosa, o travo forte de um café acabado de fazer;
aceita o carinho de um abraço bem apertado, de um beijo com sentimento, de uma mão calorosa no teu ombro.