Abro a porta de casa e sou saudada pelo silêncio, abraçada pela ausência. O som dos meus sapatos no chão de tábua corrida marca o início de mais uma noite.
Flutua no ar um cheiro a frutos vermelhos que emana do difusor. Os estores estão corridos, imóveis na posição em que os deixei de manhã. Pouso a mala, repito pela milésima vez os gestos de todos dias, nem sempre pela mesma ordem, mas seguindo o fio condutor da minha linha de pensamento.
O corredor está mudo, a cozinha vazia. Não há recados na porta do frigorífico nem no espelho da casa de banho. E no roupeiro todas as peças são do mesmo sexo.
Coloco na mesa apenas um prato e um talher. Deito para o lixo uma única cápsula de café. As conversas sobre o dia que está a acabar só têm lugar dentro da minha cabeça; não se ouve o som de uma palavra ou de um riso.
Se o telefone chama, sou sempre eu quem vai atender. A minha voz é a única neste extremo da rede. No sofá reclina-se tão-somente o meu corpo, e só um par de olhos se fixa na televisão ou no computador.
Quando me deito, não há braços em volta dos meus ombros nem pernas entrecruzadas nas minhas. A cama está vazia. E fria.
Vem. Não fujas, não resistas, não lutes É inevitável, e tu sabes. Está escrito nos astros, nos genes, no vento, é karma, fado, destino ao qual tu não podes escapar. Nem eu.
Vem. Dá um passo ao meu encontro e eu darei dois até ti. Estende a tua mão e eu irei afagá-la, primeiro ao de leve, quase sem tocar, para sentir a textura da tua pele, e depois enroscando os meus dedos nos teus como se quisesse fundi-los, transformar a tua mão e a minha num só corpo, até já não conseguir sentir onde termino eu e começas tu.
Vem. Vamos trocar olhares, palavras e sorrisos, embaraçados pela timidez do desconhecido, ansiosos por explorar o território do outro, por espreitar para dentro da sua cabeça e penetrar no seu coração. Vamos passear de mãos dadas, indiferentes ao frio e aos outros, desinteressados de tudo o que não seja nós. E falar, falar, falar, construir uma ponte de palavras para ligar as nossas margens, uma melodia de vogais e consoantes para sintonizar os nossos espíritos, uma laço de histórias e memórias para nos unir numa emoção.
Vem. Vou mostrar-te o meu mundo, revelar-te os meus gostos e as minhas manias, dar-te a conhecer texturas, aromas e paladares, partilhar contigo ideias que me comovem e lugares mágicos, contar-te segredos confessáveis e talvez outros nem tanto assim. Vou querer saber tudo de ti, aprender o que tens para me ensinar, absorver a tua essência, sugar o teu sangue. Será a imersão dos sentidos num caldo primordial, a osmose intensiva até à sintonia plena das nossas respirações, até à sincronicidade total dos nossos biorritmos.
Vem. O dia transformar-se-á em noite e a noite em madrugada, mas nós não vamos dar por nada, ocupados que estaremos a entrar um no outro e a construir o nós, alheados de tudo o que nos é exterior. Quando voltarmos a emergir seremos já uma nova tríade – eu, tu e nós – unida por um sentimento comum, exclusivo e intransferível.
Por isso, vem. Hoje, amanhã, quando quiseres. Mas vem. Porque tem de ser. Eu sei. E tu (sabes) também.